terça-feira, 31 de agosto de 2010

Limpando a área

Desapegar é a lei

A casa é o nosso refúgio, lugar de conforto e largueza, para se estirar, ficar à vontade, andar descalço ou sem roupa, descansar, ler e dançar. É também o canto no qual nos expressamos e, quando conseguimos mostrar nossa essência nos móveis e detalhes em volta, as pessoas costumam comentar: "A sua casa tem a sua cara". Um rosto, convenhamos, nem sempre certinho, arrumado e liso. Porque é nosso, puxa vida! E cada um tem sua maneira de viver e se expressar. 
Mas existem fases em que entramos pela porta de casa e a visão que se tem não é lá muito agradável. Coisas entulhadas sem serventia, acúmulo de papéis, peças que estão na prateleira há anos sem ser tocadas, livros que nem sequer foram abertos, roupas que nunca foram usadas. É o caso de questionar: será que perdemos a liga com a moradia ou é o nosso interior que anda meio perturbado? Podem ser as duas coisas, ou apenas uma delas, mas o importante é arregaçar as mangas e começar a agir. E saiba que boa parte do trabalho será feita em você: a faxina começa de dentro para fora. Não adianta empilhar mil e um objetos para doação se daqui a um mês uma nova e incrível leva estiver atravancando outra vez o seu ambiente. 


O ciclo das coisas 
Comece devagar, pensando em cada item que você não usa e, portanto, não merece ficar ali parado, sem ser aproveitado. Tenha perto um saco ou uma caixa grande, de papelão, para ir colocando as peças que serão doadas. Lia Diskin, co-fundadora do centro de estudos filosóficos Palas Athena, lembra de um ciclo que costumamos subestimar: "Cada objeto tem sua trajetória e sua utilidade. Que direito temos de imobilizar todo esforço da natureza, da criatividade humana e da tecnologia para guardar uma coisa sem usá-la?" Assim, o sapato esquecido no armário teve, em seu ciclo, o couro do boi, que foi alimentado no pasto, molhado com a água da chuva. O livro fechado também passou por várias mãos antes de chegar à sua. Antes disso, veio da árvore, nutrida pelo solo e pelo sol. Quando alguém deixa um objeto sem uso, interrompe sua história natural.

Ah, mas e o prazer de guardar, de colecionar? Como ficam as coleções de ursinhos de pelúcia, curtidas desde a infância, os discos de vinil, as latinhas de cerveja garimpadas em cada canto do mundo, os pingüins da geladeira? Bom, isso já é um caso de paixão, de gosto pessoal, departamento em que não se toca sem permissão. Se essas coleções são vivas e não estão esquecidas, pode ser legal ficar mais um tempo com elas.

Mas até isso pede análise. Será que uma coletânea de discos teria melhor continuidade em um museu, onde várias pessoas poderiam ouvir as músicas? Você já pensou em reduzir sua coleção de preciosidades para um número mais sensato, e que sua casa pode abrigar? Só você pode responder.

Algumas pessoas encontraram jeitos particulares de lidar com o excesso. Lia Diskin, de novo, é exemplo. Tudo o que ela não movimenta num período de dois anos é doado. Podem ser livros, roupas, CDs, objetos de decoração, o que for. Sua biblioteca pessoal, hoje, não ultrapassa os 500 volumes. Para Lia, que possui meia dúzia de pares de sapatos - "Não preciso mais, só tenho dois pés" -, essas cinco centenas de livros são aquelas chamadas imprescindíveis, que ela está sempre a folhear e pesquisar.

Segundo o químico Flávio Maron Vichi, professor do Instituto de Química da USP, dois anos é realmente o tempo-limite para um livro sobreviver sem estragos. "Depois disso, ele começa a se e ganhar manchas, resultado da falta de oxigênio", diz. Outros objetos, como CDs, quadros e fotos, também precisam ser arejados constantemente. Além da limpeza, necessitam de ventilação, fundamental para evitar fungos. Portanto, faz todo sentido passar as coisas adiante se num determinado período - você pode adotar a política dos dois anos ou criar um prazo-limite só seu - não precisou delas para nada.
Loucas por sapatos
Cada um possui suas prioridades. Se você tem algo em comum com a ex-primeira-dama filipina Imelda Marcos, que guardava em casa 3 mil pares de sapatos, prepare-se para mudar de espírito. Até ela teve de passar adiante - mesmo que à força, doando para um museu - seu fabuloso acervo de bicos e saltos. Há uma sensação deliciosa em se livrar de coisas que não têm utilidade. Primeiro, porque você, os outros, o ar e tudo mais passam a circular melhor. Assim, é óbvio, consegue-se pensar melhor, sentir-se melhor, viver melhor.

Depois, você percebe que ganha tempo. Porque as coisas roubam seu tempo, sua atenção e seu dinheiro! Pare para pensar: os objetos também exigem cuidados. Alguém precisa limpar, organizar e manter. E esse é um jeito de se dispersar daquilo que realmente precisa ser feito, ou seja, as atividades mais importantes e/ou prazerosas. Por exemplo: tomar um banho demorado e gostoso, devorar os livros que se propõe ler e nunca consegue tirar da estante, escrever para os amigos, cozinhar, namorar, dormir.

A empresária Joyce Teperman tem o hábito de fazer limpezas freqüentes em sua casa. Nenhuma área escapa de sua visão simplificadora: dos temperos da cozinha aos brinquedos do filho, tudo passa por varredura. Quem tem filhos pode atestar que essa é uma boa maneira de incutir parâmetros de consumo consciente e desapego. Convenhamos, é mesmo necessário ter uma dúzia de foguetes espaciais no quarto? Ou umas 20 bonecas com a mesma cara?

O budismo diz que o apego pode nos asfixiar, especialmente quando a relação com os objetos é compulsiva, de pura posse. Nesse caso, há medo da perda, ciúme, insegurança e outros sentimentos espinhosos. Igualzinho ao apego neurótico à pessoa amada.
Nostalgia mal resolvida 
Tomio Kikuchi, fundador do Insti-tuto do Princípio Único e um dos introdutores da macrobiótica no Brasil, acha que o consumo deve ser equilibrado para que haja boa eliminação. "Quando retemos demais, ficamos doentes. Isso vale para os alimentos, os pensamentos e até os objetos", diz ele. A eliminação é vital para manter o organismo desintoxicado e saudável. Assim também funciona com a mente, o espírito e a casa.

Os índios sempre souberam disto: a acumulação não existe na natureza, porque tudo o que é retido vira fonte de destruição. Foi só quando se tornou sedentário que o homem começou a se entulhar de coisas, que passaram a ser necessárias quando nunca haviam sido.

Mas vá falar para os vários tipos de "apegados" que seus objetos são inúteis. Um amigo, professor de Direito, coleciona cartões de telefone (!). Só que usa dois celulares e jamais entrou em fila de orelhão. Uma dona de casa de 55 anos guarda papéis de carta desde adolescente: são centenas de papéis decorados, circunscritos em uma gaveta da escrivaninha. Se ela gosta de escrever cartas? Só se comunica por e-mail! Eu nunca colecionei nada, porque não gosto de me cercar de muitas coisas, mas já tive mania de trazer conchinhas da praia. Deixava em vidros, na sala, embora não gostasse muito do visual.
Desapegar é a lei
Parece que o apego é também uma espécie de nostalgia mal resolvida, ou o desejo de se apropriar de algo maior, impossível de possuir (no caso das conchas, a aventura e a natureza; no dos românticos papéis de carta, a adolescência).

Há apegados de vários tipos. Há os que idolatram suas coisas a distância, sem envolvimento tátil. Há aqueles que estão sempre querendo aumentar suas coleções. E ainda os que não passam um dia sem admirá-las. Soube de uma pessoa que possui uma coleção de chaveiros (mais de 800 itens) e tem a pachorra de, toda manhã, colocar suas próprias chaves em um modelo diferente. Assim, abre a porta de casa diariamente com um novo chaveiro. Deve querer se sentir uma pessoa diferente a cada dia, ou morando em um novo lugar.

Seja o que for, essas pirações mostram como somos ligados à matéria e como ela pode acabar regendo nossa vida. O segredo para não se tornar um escravo dos objetos é o discernimento. É ele que nos faz ver o que é mesmo necessário, nos faz separar o joio do trigo e ainda mostra quando o pão está bom e sabo-roso e quando já está podre e azedo.

Produção : Viviane Gonçalves
Revista Vida simples

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